– Lícia Manzo sempre teve a mania de subverter o real. Aos 11 anos, influenciada por “Escrava Isaura”, trama exibida à época, gostava de imaginar que a escola – “religiosa, só de mulheres e muito repressora” – era a senzala, na qual ela se sentia amarrada a um tronco. Coisa de criança, vão dizer… No entanto, no caso de Lícia, criar um mundo paralelo ao seu era mais do que uma maneira de tornar a vida mais divertida, era um sinal do caminho profissional que viria traçar anos mais tarde. A garota, que tinha mania de interromper as leituras dos livros no meio para criar, ela própria, um novo final para as histórias, agora, aos 46 anos, se prepara para fazer a sua estreia como autora no horário das 18h da Globo, em “A vida da gente”, no ar a partir do dia 26.
– A ficção é a autorização da esquizofrenia, um lugar onde seu delírio e sua capacidade de transcender e imaginar compulsivamente acabam sendo um atributo, em vez de uma distorção. É um lugar que permite a sua maluquice – diz Lícia, sentada em sua sala, no apartamento onde mora com a filha, Clara, de 12 anos, na Zona Sul carioca.
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A duas semanas de ver na tela o primeiro capítulo de sua trama, a autora não consegue camuflar a ansiedade que tomou conta do seu dia a dia, desde o final de fevereiro, quando a sinopse entregue à emissora foi aprovada. Mesmo contando com uma equipe de oito pessoas – Marcos Bernstein, Alvaro Ramos, Carlos Gregório, Daniel Adjafre, Dora Castellar, Giovana Moraes, Marta Góes e Tati Bernardi -, tem dormido “mais ou menos”, por culpa do seu jeito “cricri”, sempre muito exigente e autocrítica. Sem falar que, nem se quisesse, Lícia conseguiria esquecer que coube a ela assinar o folhetim que irá substituir “Cordel encantado”.
– Imagina eu nisso! Coitada de mim! – ri, exagerada: – Fiquei honrada e impactada ao mesmo tempo, pois tenho total noção do que é essa responsabilidade. Quando eu comento que estou escrevendo a próxima das seis, alguém me pergunta: “Mas ‘Cordel’ vai acabar?”. Eu, praticamente, peço desculpas ( risos). Espero, meu Pai amado, que eu não me torne uma pessoa inoportuna por isso.
Para Duca Rachid e Thelma Guedes, responsáveis pelo sucesso da atual trama das 18h, Lícia não tem do que ter medo.
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– As expectativas em torno de sua novela são as melhores. Lícia deve acreditar na sua história e a encaminhar com coragem e verdade – avisa Duca.
Thelma recomenda à autora que mantenha a tranquilidade e a alegria no trabalho:
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– E, de coração, desejo a ela muito sucesso!
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“A vida da gente” é o primeiro folhetim de uma autora experiente, que, aos 14 anos, entrou para o Tablado e, aos 15, já levava aos palcos a sua primeira peça infantil. No início, Lícia investiu na carreira de atriz e nela passou 15 anos. Na TV, deu os primeiros passos em “Sai de baixo”, depois de ser chamada por Claudio Paiva para compor a equipe de escritores do humorístico.
– Esse trabalho foi uma prova de fogo para nós. Muitas vezes, reescrevíamos roteiros que já estavam fechados. Não era o melhor lugar do mundo para um roteirista estar e Lícia aguentou firme, sempre solidária. Para trabalhar em TV, é preciso ser criativo e suportar o ritmo industrial. Ela tem qualidades de sobra para isso – afirma Claudio, hoje autor de “Tapas & beijos”.
A atração foi um trampolim para outras produções como “Retrato falado”, “A diarista” e “Três irmãs”. Em 2009, assinou a redação final da série “Tudo novo de novo”, na qual retratou o recomeço de quem acaba de terminar um casamento. Sem largar o teatro, também são dela os textos de “A história de nós 2”, em cartaz em São Paulo, e “Aquela outra”, que estreia em novembro, no Rio. Em todos os trabalhos, Lícia não disfarça o seu envolvimento.
– Eu não sei fazer nada sem me entregar. Não sei namorar, não sei ter amigos, não sei criar filho e não sei escrever sem me envolver. Eu só sei ser íntima – afirma: – Quando “Tudo novo de novo” terminou, foi um luto para mim, por exemplo, porque naquela história estava colocando um pouco da minha situação. Já estava separada e tinha vivido as delícias e os desafios de uma relação recomposta.
Partindo do princípio de que é preciso se comover com o que está contando para, assim, atingir o público, Lícia opta por uma história humanista e segue como referências autores como Gilberto Braga, Manoel Carlos e Euclydes Marinho.
– O jeito dela de escrever me chama atenção. “A vida da gente” mostra os bastidores das relações humanas. E Lícia sabe descrever diferentes desenhos de relacionamentos de forma envolvente – diz o diretor da novela, Jayme Monjardim.
Na próxima trama das 18h, os telespectadores vão acompanhar o drama de duas irmãs muito amigas e éticas: Ana (Fernanda Vasconcellos), uma tenista premiada, e Manu (Marjorie Estiano), espécie de patinho feio da família. A vida delas tem uma reviravolta quando sofrem um acidente de carro e a esportista entra em coma. A segunda se vê na responsabilidade de criar a sobrinha, que ainda é um bebê e passa a considerar a tia como mãe. Sem falar no pai da criança, Rodrigo (Rafael Cardoso), que, levado pelas circunstâncias, acaba nutrindo um amor verdadeiro por Manu. Até o dia em que Ana abre os olhos e, sem querer, as irmãs vão se magoar.
– O desequilíbrio é a base da ficção. Ariano Suassuna diz que “o que é bom de passar não é bom de contar, e o que é bom de contar não é bom de passar”. Um conflito, por si só, tende a parecer gratuito e agressivo. Mas, quando humanizado, ele mobiliza as forças afetivas de quem vê – ensina: – E eu acho que todo mundo precisa de uma ficção. Tomar emprestado uma emoção pode ajudar a elaborar as coisas difíceis da vida.
Debruçada sobre os capítulos do folhetim, Lícia diz que mal tem tempo de ir às ruas. No máximo, caminha uma hora, diariamente, pelo Jardim Botânico. Também não tem conversado muito. O silêncio, nesse período de concentração, é fundamental. Por outro lado, não tem dúvida de que o retorno do público é arsenal para o seu trabalho.
– Um autor não escreve só para ele, mas porque quer estabelecer uma conexão. E sou capaz de mudar alguma coisa na novela de acordo com o telespectador. Sem perder a minha autoria, isso é um recurso maravilhoso para potencializar a comunicação da sua história – defende.
E como tudo a que se propõe escrever vem da ordem do familiar e do afetivo, Lícia gosta de trabalhar em casa, perto de seus objetos e suas flores. Quando não consegue seguir adiante na tela em branco do computador, recorre à vida doméstica para se inspirar: cozinha um arroz integral, toma um banho, lê uma história para a filha…
– Às vezes, ela me chama e diz: “Vamos namorar um pouquinho?”. É só porque quer deitar na cama comigo – conta ela, que, agora, não vê brechas para investir em um novo relacionamento: – Fazer novela é um voto religioso ( risos). Começar algo neste momento é difícil. Uma relação também demanda, entre aspas, trabalho. É mais um imaginário que você constrói – justifica.
Filha única, Lícia se apresenta como uma mãe “comprometida até os fios de cabelo”. Para ela, a maternidade potencializou o seu amadurecimento.
– Filho obriga a gerar dinheiro, a crescer. E você tem a obrigação de se tornar alguém melhor. Se não for uma pessoa bacana, pode causar um prejuízo para seu filho. O ser humano depende do vínculo para existir e, nessa novela, é da responsabilidade desse vínculo familiar que eu quero falar.
O GLOBO