Nos últimos anos, autores de novelas revelaram insatisfação com as políticas do setor de dramaturgia da Record
Em 2014, a Globo implantou uma nova filosofia no processo de criação de suas obras no setor de dramaturgia, criando um fórum especial, responsável por aprovar e supervisionar os autores e produções do gênero, especialmente novelas, e sob o comando de Silvio de Abreu. As mudanças demoraram a surtir efeito, e o trabalho chegou a promover fracassos históricos, como as novelas Babilônia e A Regra do Jogo, que foram um fiasco no horário nobre da emissora.
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A Record, no entanto, parece seguir o caminho inverso em termos de resultados em sua teledramaturgia. Enquanto a Globo enfrentava uma grave crise em 2015, a emissora dos bispos vivia o seu auge com o lançamento de Os Dez Mandamentos, que viria a ser sua novela de maior sucesso e abriria caminho para os folhetins bíblicos se tornarem o novo carro-chefe do canal.
Em meio à boa fase, a Record também promoveu algumas mudanças nesse setor. Além de passar a produzir apenas novelas bíblicas no seu horário nobre, a emissora promoveu, em 2017, Cristiane Cardoso, filha do bispo Edir Macedo, proprietário da Record, ao cargo de supervisora de folhetins, com o trabalho tendo início na novela Apocalipse.
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Porém, coincidentemente ou não, após essas mudanças, os folhetins da emissora, que antes estavam em alta, se tornaram bastante problemáticos e alvo de algumas polêmicas.
Depois do grande sucesso com Os Dez Mandamentos, Vivian de Oliveira foi escalada para assinar Apocalipse, que estreou cercada de expectativas. Porém, com a promoção de Cristiane Cardoso, a autora passou a enfrentar sérios problemas em termos de liberdade criativa.
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Na ocasião, muitos capítulos escritos por Vivian eram alterados sem o conhecimento e aprovação da autora, fazendo com que a trama se tornasse alvo de críticas negativas do público. Houve rumores, inclusive, de que até membros da Igreja Universal, que é liderada por Edir Macedo, interferiram nos rumos da história através de Cristiane. Resultado? A trama tornou-se um verdadeiro fracasso de audiência e chegou a ser encurtada em 60 capítulos.
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Internamente, corriam rumores de que Vivian de Oliveira ficou extremamente chateada com as interferências no texto do folhetim, e chegou a retirar Apocalipse da sua bio nas redes sociais com a lista de novelas que já havia assinado, sugerindo que não era a verdadeira autora da trama. A insatisfação ficou ainda mais evidente quando Vivian deixou a emissora em 2018, pouco tempo após o encerramento de Apocalipse. A novelista ainda tinha mais dois anos de contrato com a Record, mas decidiu, “em comum acordo”, rescindir o seu vínculo com o canal, e garantiu, publicamente, que deixou a casa sem maiores problemas. Porém, tudo levou a crer que a relação findou de forma conturbada.
Diante desses problemas, um autor veterano da casa resolveu colocar mais lenha na fogueira. Sem novas oportunidades na Record desde 2014, quando escreveu a minissérie Plano Alto, Marcílio Moraes passou a alfinetar a própria emissora nas redes sociais.
Insatisfeito com os rumos da teledramaturgia e a falta de oportunidades no canal, o autor de novelas como Vidas Opostas (2006) e Ribeirão do Tempo (2010) chegou a sugerir que a má fase dos folhetins da Record se devia justamente às interferências de outras pessoas e fez uma comparação com a Globo.
“Um amigo quis saber a que eu atribuo o extraordinário sucesso da TV Globo durante as últimas décadas. Minha resposta: certamente há muitas razões, mas a principal delas, a que está na origem, a fundamental, é que o Roberto Marinho e seus filhos nunca se meteram nas novelas. Como 70 por cento do faturamento da Globo vem das novelas, a coisa deu certo. E continua dando”, escreveu.
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Semanas depois, Marcílio voltou às redes sociais, e novamente nas entrelinhas, tornou sua crítica mais dura. “Veja se consegue responder: o que acontece quando se entrega o comando do avião a pessoas que não são pilotos de avião?”, escreveu o autor na legenda de uma imagem com um avião em queda.
O novelista não teve mais espaço na Record, e este ano também deixou a emissora, frustrado. “Os primeiros nove anos na Record foram excelentes. Tive oportunidade e liberdade para escrever novelas e séries de sucesso e relevantes para a dramaturgia televisiva. Os últimos cinco anos foram frustrantes para mim. Nada emplaquei, a não ser reprises”, afirmou o autor em entrevista ao site Notícias da TV.
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Em 2016, essa “nova fase” do departamento de dramaturgia da Record ainda não havia se iniciado oficialmente, mas já gerava polêmica. Autor de A Terra Prometida, sucessora de Os Dez Mandamentos, e que registrou boa audiência, Renato Modesto também deixou a emissora chateado e após um mal entendido.
“O que me incomodou foi o fato de que, verbalmente, prometeram que iriam renovar o contrato, mas, quando terminei de escrever os capítulos na semana passada, me informaram do contrário”, contou o autor à revista Veja na época.
E a lista não se encerra aí. Gustavo Reiz, que estava em alta na Record após escrever as novelas Escrava Mãe e Belaventura, tramas bem avaliadas pela crítica, foi escalado para escrever Gênesis, próximo folhetim bíblico da emissora.
Porém, o autor entrou em conflito de ideias com a direção de dramaturgia e acabou sendo afastado da trama. Meses após o ocorrido, o novelista também deixou a Record e acabou assinando contrato com a Globo.
NOVA FASE?
Apesar da crise com as novelas bíblicas, a Record parece ter se encontrado novamente na dramaturgia na faixa das 20h, mas curiosamente, com tramas contemporâneas. O horário, antes ameaçado, agora aparece em alta após o sucesso da novela Topíssima — que, inclusive, ganhará segunda temporada — e tem continuidade com mais um folhetim do gênero, Amor Sem Igual, que estreou nesta quarta-feira (10).
A única autora que até o momento não demonstra ter maiores problemas de relacionamento com Cristiane Cardoso é Cristianne Fridman. A novelista já havia escrito a macrossérie Jezabel e Topíssima, e segue emendando trabalhos, agora com Amor Sem Igual.
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O que chama atenção na atual novela das 20h é o fato da trama ter abraçado de vez a contemporaneidade, com direito a uma personagem prostituta, vivida por Day Mesquita, como protagonista. É curioso o fato de haver uma personagem desse gênero em meio às polêmicas em torno das interferências da igreja na teledramaturgia da emissora.
Surpreendentemente, a autora revelou que a ideia da personagem partiu da própria Cristiane Cardoso, mesmo que a trama não pretenda se aprofundar no universo da prostituição. E ao contrário dos ex-colegas, a novelista elogiou a chefe: “As pessoas têm essa coisa com a supervisão da Cristiane, mas ela acrescenta muito”.
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Vale lembrar que essa ideia polêmica é colocada em prática após um protesto de conservadores contra Topíssima, que tratou de outro tema controverso: o aborto — após a morte da personagem Jandira (Brenda Sabryna) em um aborto clandestino, alguns telespectadores chegaram a organizar um protesto na frente dos Estúdios Casablanca, no Rio de Janeiro, onde ocorriam as gravações da novela.
Apesar da Record ainda insistir na produção de novelas bíblicas para o horário nobre, mesmo com o adiamento de Gênesis para o ano que vem, as novelas contemporâneas na faixa das 20h parecem indicar um caminho interessante e que conta com boa aceitação do público.
Resta saber se isso também significará uma flexibilidade maior do comando da dramaturgia da emissora na questão do conservadorismo, além de uma mudança na relação com seus autores, seguindo o exemplo do que ocorre com Cristiane Fridman.